quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Uma questão a merecer definitividade: Os Estados devem respeitar e repassar aos municípios a parcela do ICMS que lhes é de direito.

“Os Estados fazem cortesia com o chapéu alheio.”

Com a sugestão da adoção da Súmula Vinculante nº 30, pretendeu o Supremo Tribunal Federal extirpar celeuma sobre matéria que vem sendo, há muito discutida.
A grande discussão: pode o Estado deixar de repassar aos Municípios a parcela que lhes é de direito do ICMS, tendo como justificativa suposto incentivo fiscal?
O Excelso Pretório divulgou decisão que definitivamente coíbe tal prática e pretende – é o que se denota – que a regra seja convalidada de modo a não mais permitir discussões (sejam diretas ou paralelas).
A edição da Súmula Vinculante nº 30 chegou a ser divulgada pela imprensa. O verbete teria – terá – a seguinte redação: "É inconstitucional lei estadual que, a título de incentivo fiscal, retém parcela do ICMS pertencente aos municípios".
Mas, recente determinação da mais alta corte resolveu suspender a publicação oficial do incidente de uniformização jurisprudencial, atendendo a pedido do Ministro José Antônio Dias Toffoli, que entende ser necessário analisar com mais cautela a abrangência da súmula, pois existiriam situações que por ela poderiam ser alcançadas e que não deveriam sê-lo
Fato é, entretanto, que o pano de fundo do tema convence o debate. A despeito disso, não se pode olvidar que a decisão do RE 572.762-9 é retumbante. Ainda que despida da força de súmula vinculante, certamente orientará futuras decisões, até porque, adotada pelo pleno do STF, e por unanimidade.
Este arrazoado tem como escopo a avaliação de toda a questão, procurando sintetizar o alicerce jurídico que se forma como tessitura a revestir os propósitos aclimatados pelos excelentíssimos Ministros.
Mais uma vez o questionamento: podem os estados abrir mão de parcela do imposto ICMS que não lhes pertence?
A negativa como resposta é evidente – mas impera discursar acerca dos fundamentos que configuram a assertiva como única aceitável. A despeito da visão que a princípio poderia ser impositiva e maniqueísta, certo é que as razões que a cercam merecem revolvimento.
Primeiro aspecto a ser analisado é o que exsurge da regra contida no artigo 158, IV, da Carta Constitucional da República, que assim dispõe:
“Art. 158. Pertencem aos Municípios: (...) IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.”
A permitir uma visão panorâmica, vale a transcrição da regra contida no caput do artigo 160, do mesmo diploma:
“Art. 160. É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, nesta seção, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos relativos a impostos.”
A questão que se defronta, nesse descortinar, é de simplicidade elementar.
Os Estados, em prol de fortificar os achaques resultantes da chamada “guerra fiscal” utilizam armas alheias, ou como dito no próprio acórdão do STF, “fazem caridade com o chapéu alheio”.
E a justificativa a tal oposição tem espaldares próprios. A Constituição Federal de 1988 pode mesmo ser alcunhada da “carta municipalista”. Adotou como cerne da coluna vertebral política o fortalecimento dos municípios. E, como baluarte, pretendeu compartilhar receitas, de maneira a justificar a pretensão. Município com independência pressupõe autonomia financeira. Para alcançar tal objetivo, a Constituição perfilhou a coparticipação ou compartilhamento.
O que ocorre é que os Estados, pressupondo que a origem do crédito a ser compartilhado é de natureza estadual – no caso, o ICMS – se valem de tal conceito para justificar deliberação que não lhes cabe. É o chamado “condomínio federativo”, ao qual fez menção o Ministro Celso de Mello, em diversos julgados seus. Não fazem favor algum ao partilhar, ao contrário, seguem comando constitucional que pressupõe, inclusive, sanção no caso de não ser atendida a ordem, como se verifica na regra do artigo 34:
“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (...) b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;”
A conclusão inarredável pode ser apurada em texto de jurista Kiyoshi Harada, de rara simplicidade, mas de evidente efetividade, a resumir a controvérsia:
“No imposto de receita partilhada há, necessariamente, mais de um titular, pelo que cabe à entidade contemplada com o poder impositivo de restituir e não repassar a parcela pertencente à outra entidade política. O imposto já nasce, por expressa determinação do Texto Magno, com dois titulares no que tange ao produto de sua arrecadação. O fato de o Estado-membro deter a competência tributária em relação ao ICMS não lhe confere superioridade hierárquica em relação ao município no que tange à participação de cada entidade no produto de arrecadação desse imposto. A Carta Política já partilhou o produto de arrecadação desse imposto na proporção de 75% para o Estado-membro, titular da competência impositiva, e 25% para os Municípios, prescrevendo no parágrafo único do art. 158 os critérios para creditar as parcelas cabentes às comunas.”
A matéria é singela, mas merecia mesmo ser encorpada pela decisão do Excelso Pretório. A regra a ser seguida: a arrecadação nasce como direito do Município, não cabendo ao Estado a possibilidade de renunciar, postergar ou reavaliar receita que não é originariamente sua.
A lição extraída da Súmula, hoje de aplicação suspensa, é o manifesto reconhecimento da soberania dos municípios, um dos alicerces do arcabouço político desenhado pela Constituição de 1988. E não há independência política sem se cogitar em independência econômica. Para isso, a Carta Política determinou, além das arrecadações tributárias municipais ordinárias e próprias, também o compartilhamento com outras receitas fiscais.
A súmula merece aplausos, em todo seu contexto. O reconhecimento perfilhado no julgado que lhe deu origem é digno de expresso reconhecimento e, certamente, albergará os futuros entendimentos sobre a questão.
O pretenso interesse em municiar-se de forte brigada a sustentar uma guerra fiscal entre os estados não pode subsidiar o direto confronto com a Lei Maior, solapando a adoção dos princípios ali contidos. O município forte e independente é a consumação mais indelével do palco da cidadania. Não se concebe como “carta cidadã” aquela que abraça pensamento diametralmente oposto. A decisão mater que redundou na edição da súmula vinculante, hoje de aplicação suspensa, haverá de ser lembrada e reconhecida como uma decisão que externa cidadania, absolutamente!

Peter Rossi

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