quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O brega jurídico

O brega jurídico

José Eduardo de Resende Chaves Júnior - Presidente da Rede Latino-americana de Juízes, juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), juiz titular da 21ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, doutor em direitos fundamentais, coordenador do grupo de pesquisas Gedel, sobre Justiça e direito eletrônico da Escola Judicial do TRT-MG e membro do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico (IBDE)




 
O brega jurídico é uma disciplina contemporânea e que caminha a passos largos para sua plena autonomia didático-científica. Tem seus princípios reitores próprios e específicos, que não se confundem com os tradicionalismos e vícios de linguagem. O Brega Jurídico, com maiúsculas, não se limita ao formalismo sintático ou semântico da linguagem; ele é mais profundo, não é apenas uma forma de ser e estar no mundo forense, é todo um corpo filosófico abrangente, um verdadeiro sistema, com conteúdo e personalidade.
Como não poderia ser diferente, o princípio essencial do brega jurídico é o eloquente “Estado democrático de direito”, que é clamado, sem dó nem piedade, na contestação ou na porta do elevador, mesmo porque o brega é visceralmente democrático, e não é próprio de nenhuma tribo específica da República dos bacharéis, ele contagia todo mundo: juízes, promotores, advogados, funcionários judiciários, estudantes, estagiários e até peritos.
Mas para falar sobre o brega jurídico a primeira e transcendental questão que se apresenta é a respeito da própria fonte a ser usada. A indefectível Times New Roman, por exemplo, dada sua aparente neutralidade, é um recurso largamente usado para encobrir o fenômeno brega – muito embora o chique mesmo, seja usar Courrier New ou mesmo, a novíssima fonte ecológica (Spranq eco sans), que são mais rápidas e econômicas.
O brega jurídico, entretanto, não sucumbe nem mesmo diante da elegância formal da fonte do editor de texto; dotado de uma essência metafísica, de uma quididade axiológica, o cafona jurídico consegue revelar sua verdade interior mesmo em ambientes de escrita fashion.
O adepto do brega jurídico tem horror ao gerúndio, por confundi-lo com o anglicismo do telemarketing (present continuous tense). Nada mais cordial e brasileiro que um bom gerúndio, ora pois!
Há expressões clássicas e muito caras ao brega jurídico: “douto louvado”, “o mesmo” (pronome substantivo), “peça ovo”, “exordial”, “supedâneo”, “operador do direito” – que nenhum de nós consegue escapar. Mas o brega que é de raiz, não se contenta com isso e manda ver também um “denota-se” ou um “dar ensanchas”, quando não um “em ressunta”, “perfunctório”, “perlustrar os autos”, “pronunciamento fósmeo”, “recurso prepóstero”, “tudo joeirado” e outros que tais.
As versões mais eruditas do brega jurídico se insinuam inclusive na teoria jurídica mais profunda. Enfiam Habermas no processo, e até Deleuze no direito. Os mais prosaicos preferem excertos exotéricos, estrofes de pop music, axé ou alguma pieguice literária, como epígrafe de peças processuais. Mas atenção: citar os pronto-socorros jurídicos como doutrina é uma vertente eclética, que pretende conspurcar o purismo do brega jurídico, injetando-lhe um quê de insciência.
Na verdade, o brega jurídico não é um estilo de uma pessoa específica, senão de uma persona, no sentido grego, da máscara que usamos no mundo dos autos. É a nossa afetação linguística quando somos instados, nós, “operadores do direito” (outra expressão típica do brega), a atuar no palco forense.
O brega jurídico é, em síntese, o papel social que desempenhamos, papel e representação que inclusive a própria sociedade cobra do bacharel. Persona do latim, ensinam os etmólogos, tem conexão com a origem grega de prosopopeia, que, por sua vez, além do sentido de personificação, curiosamente, é também sinônimo de discurso empolado.
Mas, tirando as máscaras, e despersonificando o discurso, brega mesmo é tentar ditar regras estilísticas a alguém. Brega é pensar que sabe mais do que os outros; brega, enfim, é não ter cuidado com a sensibilidade alheia, inclusive com a sensibilidade linguística. Tentando arrancar, assim, a nossa carapuça, brega somos todos nós e essa nossa linguagem judiciária, que ricocheteia, perdida, entre a retórica e a equidade, sem saber por onde escapulir.
Mas será que bom gosto jurídico é uma contradição em termos? Será que o mundo jurídico está fadado de forma inexorável ao brega forense? Pessoa nos lembra que não “seriam cartas de amor se não fossem ridículas” e esse, talvez, seja o consolo para o nosso arsenal esdrúxulo e kitsch do direito.

(Publicado no jornal "Estado de Minas", caderno Judiciário, edição de 07.02.2011)

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